Autor(es):
Soares, Isabel Maria Seabra Correia
Data: 2008
Identificador Persistente: http://hdl.handle.net/10362/5201
Origem: Repositório Institucional da UNL
Assunto(s): Cerebral Infarction; Predictive Value of Tests; Aged; Case Studies; Portugal
Descrição
RESUMO
Introdução
O acidente vascular cerebral (AVC) é a segunda causa de morte a nível mundial e a
terceira nos países industrializados. A idade é o factor de risco não modificável mais importante para AVC, verificando-se um aumento da incidência de AVC até ao limite
mais extremo da idade avançada. Presentemente, mais de metade de todos os AVCs ocorrem em doentes com mais de 75 anos, e, dado que a esperança de vida está a
aumentar, sendo os muito idosos o segmento de crescimento mais rápido da população, é
de esperar que este segmento da população venha a contribuir com uma proporção cada
vez maior do número total de AVCs.
O AVC no doente idoso apresenta características particulares, sendo diferente do AVC no doente mais jovem relativamente a factores de risco, a subtipos clínicos e etiológicos de AVC, e a prognóstico. O factor de risco ardiovascular mais importante para AVC em doentes idosos é a fibrilhação auricular. O enfarte cerebral em doentes idosos é clinicamente mais grave do que nos restantes doentes, associando-se esta maior gravidade a uma maior incidência de enfartes cardioembólicos. As taxas de letalidade são mais elevadas nos doentes mais idosos, e o estado funcional dos sobreviventes é, igualmente, pior, a curto e a longo prazo. Contudo, uma proporção importante de doentes idosos com AVC sobrevive em bom estado funcional.
Até agora, muito poucos estudos procuraram identificar factores preditivos independentes
de resultado em doentes idosos com AVC em geral, de qualquer subtipo patológico, e
menos ainda em doentes idosos apenas com AVC isquémico. Objectivos: O objectivo principal deste estudo consistiu em descrever a contribuição do AVC para a passagem de um estado independente para um estado de dependência ou morte numa coorte de doentes idosos que sofreram o seu primeiro AVC isquémico ao longo da vida, e em identificar os factores que a determinam. Paralelamente, como objectivo secundário, foi analisada a demografia, factores de risco, aracterísticas clínicas e de resultado da coorte de doentes idosos, estratificada em dois grupos de idade. Métodos:
No período entre 1 de Julho de 2003 e 31 de Dezembro de 2005, foram recrutados todos
os doentes com idade igual ou superior a 70 anos, internados consecutivamente no
Serviço de Medicina I do Hospital Egas Moniz, pelo seu primeiro AVC isquémico ao
longo da vida. Foi adoptada a definição de AVC da Organização Mundial de Saúde
(OMS). Os doentes foram avaliados na fase aguda, à data da alta hospitalar e em
consultas de seguimento aos 1, 3 e 6 meses. Foi elaborado um protocolo padronizado
para a avaliação na fase aguda, e outro para as consultas de seguimento.
O protocolo destinado à fase aguda incluía informação sobre: (1) dados sociodemográficos; (2) factores de risco vascular e outras comorbilidades; (3) avaliação cognitiva pré-AVC; (4) avaliação de incapacidade pré-AVC; (5) dados de avaliação médica geral na fase aguda; (6) índice de comorbilidade médica geral de Charlson; (7) dados de avaliação neurológica do doente, quer de uma forma especificada, quer sintetizados numa escala de gravidade dos défices neurológicos, a “National Institutes of Health Stroke Scale” (NIHSS) e na classificação clínica do “Oxfordshire Community Stroke Project” (OCSP); (8) resultados laboratoriais de rotina primeiros valores após o início do AVC); (9) resultados dos principais exames complementares de diagnóstico: TC crâneo-encefálica sem contraste, lectrocardiograma, ecocardiograma trans-torácico, doppler das artérias cervicais extracraneanas; e outros exames, em doentes seleccionados; (10) a classificação etiológica dos AVCs segundo os critérios do “Trial of Org 10172 in Acute Stroke Treatment” (TOAST); (11) principais complicações neurológicas e médicas, ocorridas durante o internamento; (12) principais intervenções terapêuticas; (13)
estado vital (morte à data da alta ou até aos 28 dias; data e causa de morte); (14)
gravidade dos défices neurológicos e estado funcional à data da alta; (15) destino após a
alta.O protocolo elaborado para as avaliações de seguimento incluía informação sobre:(1) estado vital (morte; data de morte; causa de morte); (2) local de residência; (3)terapêutica efectuada; (4) ocorrência de eventos cerebrovasculares recorrentes ou cardiovasculares; (5) presença de sintomas e/ou sinais de insufuciência cardíaca; (6) avaliação da gravidade dos defices neurológicos residuais; (7) avaliação funcional; (8)
nova avaliação cognitiva (realizada apenas na consulta dos 6 meses).A análise estatística consistiu, em primeiro lugar, numa análise descritiva da coorte
global de doentes seguida de uma análise comparativa dos doentes estratificados em dois grupos de idade (< 80 versus @ 80 anos), relativamente ao conjunto de todas as variáveis independentes e de resultado; em segundo lugar, no subgrupo de doentes sem
incapacidade pré-AVC, após um processo de selecção de variáveis, foram desenvolvidos,
pelo método de regressão logística múltipla backward stepwise, modelos preditivos para
o resultado “morte ou dependência” versus “estar vivo e independente” aos 6 meses. Para
a selecção das variáveis, procedeu-se em primeiro lugar a análise bivariada, tendo sido removidas as variáveis que não apresentavam associação significativa com o resultado.
Em segundo lugar, as restantes variáveis foram classificadas em cinco grupos, sendo o
primeiro constituído pelas variáveis demográficas (género e idade), o segundo, por uma variável do exame clínico geral, o terceiro, pelas variáveis da avaliação neurológica inicial, o quarto, por uma variável imagiológica, e o quinto por uma variável de comorbilidade médica geral.
Resultados: População geral de doentes
Durante o período de 30 meses em que se procedeu ao recrutamento prospectivo de
doentes, foram internados consecutivamente 145 doentes que preenchiam os critérios de
inclusão, dos quais 142 aceitaram participar no estudo. A idade média dos doentes era de
79,5±6,0 anos e 69,7% eram do sexo feminino. O factor de risco vascular mais frequente
no conjunto da população foi a hipertensão arterial, atingindo 73,2% dos doentes. A
diabetes mellitus e o consumo de tabaco, passado ou corrente, foram presentes em igual
proporção de doentes (27,5%, cada). A fibrilhação auricular, antes ou durante o
internamento hospitalar, foi detectada em 39,3% dos doentes. A proporção de doentes
com incapacidade prévia ao AVC (score de Rankin modificado pré-AVC > 2) foi de
19%, traduzindo, pelo menos em parte, a presença de numerosas comorbilidades
(insuficiência cardíaca em 39,4% dos doentes; doença osteo-articular em 38,7%;
incontinência de esfincteres em 31,0%; défice cognitivo em 18,4%; défice visual em
18,3%; e défice auditivo em 15,6%). O índice de comorbilidade de Charlson foi superior
a 1 em 54,9% dos doentes. Na avaliação neurológica inicial, através da escala de NIHSS,aproximadamente metade dos doentes (50,7%) tinha um score igual ou superior a 7,
sendo este o valor mediano deste score para o conjunto dos doentes. Aos 28 dias e seis
meses, as taxas de letalidade foram de 5,6% e 22,5%, respectivamente. Dos
sobreviventes, aos seis meses, 44,5% apresentava incapacidade moderada ou grave (score de Rankin modificado > 2). No conjunto de toda a população, a proporção de doentes com score de Rankin modificado > 2 aumentou de 19% antes do AVC para 57% aos seis meses, sendo de 34,5% a proporção de doentes com incapacidade moderada ou grave.
Nos 115 doentes sem incapacidade antes do AVC, a taxa de letalidade, aos seis meses, foi de 19,1%, e dos sobreviventes, 34,5% ficaram com incapacidade moderada a grave (score de Rankin modificado > 2).
Comparação dos doentes estratificados em dois grupos de idade Dos 142 doentes que aceitaram participar no estudo, 75 (52,8%) tinham idade igual ou superior a 80 anos. Neste grupo de doentes, em comparação com o grupo mais jovem, havia mais doentes do sexo feminino (77,3% versus 61,2%; p=0,037), mais viúvos (54,7% versus 37,3%; p=0,038), menos doentes a viver em suas casas com
esposa/companheiro (34,7% versus 56,7%; p = 0,008), mais doentes a viver com familiares ou cuidador (34,7% versus 17,9%; p = 0,024), e mais doentes a viver em instituição (8,0% versus 0,0%; p=0,029). Relativamente aos factores de risco vascular, o grupo mais idoso apresentou uma frequência mais elevada de fibrilhação auricular pré ou intra-hospitalar (48,6% versus 28,8%; p = 0,016) e de insuficiência cardíaca (49,3% versus 28,4%; p = 0,011), e uma frequência mais baixa de antecedentes de tabagismo (20,0% versus 35,8%; p=0,035), consumo de álcool (6,7% versus 22,4%; p=0,007) e doença arterial periférica (2,7% versus 13,4%; p=0,017). A incapacidade prévia ao AVC,
definida pelo Índice de Barthel (score <100), ou pela escala de Rankin modificada (score >2), foi mais frequente no grupo mais idoso (56,0% versus 31,3%, com p = 0,003 e
29,3% versus 7,5%, com p = 0,001, respectivamente).
A proporção de doentes com pressão arterial (PA) sistólica inicial elevada é menor no
grupo de doentes mais idoso (57,3% versus 76,1%; p=0,018). Na avaliação neurológica
inicial, este grupo apresentou uma maior proporção de doentes com afundamento do
estado de consciência (62,7% versus 31,3%; p<0,001), afasia (42,7% versus 17,9%; p =
0,001), alteração da motilidade ocular (36,0% versus 20,9%; p = 0,047), e com um score de NIHSS inicial @ 7 (65,3% versus 34,3%; p<0,001). A distribuição dos subtipos
clínicos do OCSP foi diferente entre os dois grupos de doentes (p=0,001). Os enfartes
total e parcial da circulação anterior (TACI e PACI, respectivamente) foram mais
frequentes no grupo de doentes com idade mais avançada (18,7% versus 6,0%, para o
TACI; 48,0% versus 28,4%, para o PACI). Os enfartes lacunares e da circulação posterior
(LACI e POCI, respectivamente) foram mais frequentes no grupo de doentes mais novo
(52,2% versus 29,3%, para o LACI; 13,4% versus 4,0%, para o POCI). Na classificação
etiológica, apenas o AVC por oclusão de pequenos vasos foi mais frequente no grupo de
doentes menos idoso (22,4% versus 2,7%; p < 0,001).
No final do período de seguimento, o grupo de doentes mais idoso tinha uma maior
proporção de casos fatais (33,3% versus 10,4%; p=0,001), e, nos sobreviventes, uma
maior proporção de doentes incapacitados, quer com a incapacidade definida pelo índice
de Barthel (score < 100) ou pela escala escala de Rankin modificada (score > 2) (78,0% versus 51,7% com p=0,004 e 56,0% versus 35,0% com p=0,027, respectivamente).
Modelos preditivos
Na análise multivariável foi incluído apenas o grupo de doentes que não tinha
incapacidade prévia ao AVC, constituído pelos 115 doentes que tinham um score de
Rankin pré-AVC igual ou inferior a 2. No desenvolvimento dos modelos, as variáveis
idade e género, a PA sistólica inicial codificada (@140 mmHg), a variável de imagem
“cortical extenso” e o índice de comorbilidade de Charlson, são comuns a todos eles. As variáveis neurológicas, diferentes de modelo para modelo, são: o score de NIHSS, no modelo1; o score de coma de Glasgow (15 versus <15), no modelo 2; o subtipo clínico TACI, no modelo 3; e as variáveis neurológicas clínicas, afasia, extinção, parésia de mais do que um membro, campos visuais e motilidade ocular, no modelo 4.
O modelo 1, em que o score de NIHSS constituiu a forma de avaliação do défice
neurológico inicial, foi o que teve melhor exactidão preditiva, classificando
correctamente 85,2% dos doentes e explicando 60% da variância no resultado (R2 de
Nagelkerke). A capacidade discriminativa deste modelo, medida através da area under
the receiver operating characteristic (ROC) curve (AUC), foi a mais elevada (0,893),
embora não sendo estatisticamente diferente da AUC dos outros modelos. Os preditores
independentes de mau resultado neste modelo foram o género feminino, a PA sistólica inicial @ 140 mmHg e o score de NIHSS inicial. Em todos os restantes modelos, as
variáveis da avaliação neurológica inicial foram igualmente preditores independentes de
resultado, em conjunto com o género feminino e o índice de comorbilidade de Charlson.
A idade e a PA sistólica inicial foram também preditores independentes de resultado nos modelos 3 e 4, e a variável “cortical extenso” no modelo 2.
Conclusões
No presente estudo, considerando a totalidade dos doentes, aos 6 meses após o AVC, as proporções dos doentes que morrem ou ficam incapacitados, em particular a dos doentes incapacitados, são mais altas do que as encontradas em estudos incluíndo doentes de todas as idades com o seu primeiro AVC isquémico, reflectindo o pior prognóstico dos
doentes mais idosos com AVC isquémico, em que uma proporção importante apresenta
incapacidade já antes do AVC. No entanto, considerando apenas os doentes sem
incapacidade prévia ao AVC, as proporções encontradas para morte ou incapacidade aos
6 meses foram próximas das de estudos de base populacional incluíndo doentes de todas
as idades com o seu primeiro AVC isquémico.
O presente estudo demonstrou que em doentes idosos que sofrem o seu primeiro AVC
isquémico ao longo da vida, e que não tinham incapacidade prévia ao AVC, a gravidade
do défice neurológico inicial é, do mesmo modo que nos doentes com AVC isquémico de
todas as idades, o principal preditor independente de resultado.
O score de NIHSS demonstrou ser um importante preditor independente de resultado em doentes idosos com AVC isquémico, eliminando a contribuição independente para o resultado de vários outros preditores potenciais, o que não aconteceu quando a gravidade do AVC foi medida através de outras variáveis de validade e fiabilidade mais incerta.
O presente estudo demonstra como o resultado de uma análise multivariável é fortemente
afectado pelas variáveis independentes utilizadas. Os vários modelos apenas diferiam na forma como foi avaliada a gravidade neurológica do AVC, originando, mesmo assim, resultados bastante diferentes. Este facto reforça a necessidade de utilizar para o desenvolvimento dos modelos variáveis clinicamente relevantes, com elevada fiabilidade e validade comprovadas.
Uma das características dos doentes muito idosos é a presença de múltiplas
comorbilidades simultaneamente. O presente estudo sugere que o efeito da comorbilidade sobre o resultado pode ocorrer por intermédio da maior gravidade neurológica do AVC,embora estes resultados necessitem de ser confirmados em estudos com maior número de doentes. Este achado, a confirmar-se, é da maior importância, levando a que a prevenção e tratamento da patologia cardiovascular e cerebrovascular deva ser encarada como um todo.
O presente estudo mostra que os doentes muito idosos com AVC isquémico apresentam
características epidemiológicas e clínicas específicas, mesmo quando a comparação é
feita entre dois diferentes estratos de doentes idosos. Em particular, a maior frequência,neste grupo de doentes, de fibrilhação auricular, associada à maior frequência dos enfartes TACI e PACI da classificação clínica do OCSP, que são os subtipos clínicos mais frequentemente de etiologia cardioembólica, têm importantes implicações relativamente a prevenção e tratamento, reforçando a importância da anticoagulação terapêutica tanto para prevenção primária como secundária.