Autor(es):
Dias, Elsa
Data: 2009
Identificador Persistente: http://hdl.handle.net/10400.18/722
Origem: Repositório Científico do Instituto Nacional de Saúde
Assunto(s): Microcistinas; Genotoxicidade; Potencial Cancerigénico; Promoção Tumoral; Cianobactérias; Toxicidade
Descrição
Tese de doutoramento na especialidade de Toxicologia apresentada à Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, 2009 As microcistinas são metabolitos secundários produzidos por cianobactérias de
água doce e constituem um risco para a saúde pública uma vez que a ingestão de água
contaminada com microcistinas tem sido associada a episódios de hepatotoxicidade
humana aguda e crónica.
As cianobactérias são constituintes naturais do fitoplâncton de água doce e
proliferam massivamente em condições ambientais favoráveis. Porém, a pressão
antropogénica sobre os recursos hídricos tem contribuído para o aumento deste
fenómeno a nível global, designadamente através da contaminação das massas de água
com resíduos urbanos, industriais e agrícolas, cujo conteúdo enriquecido em azoto e
fosfatos constitui um estímulo para o crescimento cianobacteriano. A proliferação
intensa de cianobactérias (florescência) tem como consequência a acumulação de
densidades elevadas de biomassa que, após a fase de senescência, liberta para a água
níveis potencialmente nocivos de cianotoxinas. Uma proporção elevada das
florescências é composta por cianobacterianas tóxicas e as cianotoxinas mais frequentes
são as microcistinas.
As microcistinas são um conjunto de aproximadamente 60 variantes estruturais
partilhando a estrutura heptapeptídica cíclica comum ciclo(-D-alanina1-L-x2-D-eriro- -
iso-aspartato3-L-z4-Adda5-D-glutamato6-N-metil-desidroalanina7) em que x e z são
aminoácidos-L variáveis e Adda é o ácido (2S, 3S, 8S, 9S)-3-amino-9-metoxi-2,6,8-
trimetil-10-decafenil-4,6-dienóico. A MCLR (com leucina e arginina nas posições
variáveis) é a variante mais tóxica e mais comum.
O órgão-alvo principal das microcistinas é o fígado uma vez que os hepatócitos
expressam ao nível da membrana citoplasmática polipéptidos transportadores dos aniões
orgânicos, através dos quais as microcistinas entram na célula. Assim, a maioria dos
estudos toxicológicos com microcistinas tem sido conduzida no fígado in vivo e em
células hepáticas in vitro.
Com base em estudos de toxicidade aguda em animais, foi estabelecido em 1998
pela Organização Mundial de Saúde o valor-guia de 1 nM para a MCLR em água de
consumo. Porém, este valor constitui uma medida preventiva parcial, uma vez que não
contempla efeitos noutros órgãos nem efeitos crónicos, nomeadamente efeitos
cancerigénicos. No entanto, estudos recentes têm demonstrado que a MCLR apresenta
toxicidade noutros órgãos tais como os intestinos, os rins, o cérebro, pulmões e sistema
reprodutor. Por outro lado, e embora a informação disponível sobre a toxicidade crónica
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não permita ainda a revisão daquele valor, a MCLR está actualmente classificada pela
IARC (International Agency for Research on Cancer) como um composto
potencialmente cancerigénico (classe 2B).
Alguns estudos epidemiológicos associaram o aumento da incidência de
hepatocarcinoma e cancro do cólon em populações humanas ao consumo de água
contaminada regularmente com microcistinas. Por outro lado, estudos de
carcinogenicidade em ratinhos revelaram que a MCLR é um promotor tumoral no
fígado, pele e cólon. Recentemente tem sido descrita a actividade genotóxica da MCLR
em diferentes tipos celulares. Contudo este é ainda um assunto alvo de alguma
controvérsia na comunidade científica e não é ainda claro que a MCLR tenha, per si,
capacidade de iniciação tumoral. Portanto, o conhecimento dos mecanismos subjacentes
a uma eventual acção cancerigénica das microcistinas apresenta imensas lacunas.
O objectivo do trabalho apresentado nesta tese foi a avaliação do potencial
cancerigénico de microcistinas. Numa fase inicial seleccionou-se um modelo
experimental in vitro (trabalho apresentado no capítulo 2). Para tal avaliou-se o efeito de
extractos semi-purificados de duas estirpes de Microcystis aeruginosa, uma produtora
de MCLR e outra não produtora de cianotoxinas, no crescimento e viabilidade de linhas
celulares de hepatócitos humanos (HepG2) e de ratinho (AML12) e numa linha celular
de rim de macaco (Vero-E6), através de testes de citotoxicidade (MTT e LDH). A
escolha dos hepatócitos é óbvia, uma vez que o fígado é o órgão-alvo das microcistinas.
Usaram-se hepatócitos humanos e de ratinho porque a sensibilidade à MCLR pode
depender da espécie. Usou-se também uma linha celular de rim, com o intuito, à data do
planeamento do trabalho, de incluir nos ensaios um modelo celular não hepático como
controlo negativo. As estirpes de M. aeruginosa foram isoladas de florescências naturais
colhidas na albufeira de Montargil e são actualmente mantidas na colecção de algas
“Estela Sousa e Silva” do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA). A
caracterização da produção de cianotoxinas pelas estirpes usadas neste trabalho foi
elaborada previamente no âmbito de outros trabalhos de investigação decorridos no
Departamento de Saúde Ambiental do INSA. A utilização da estirpe de M. aeruginosa
não tóxica teve como finalidade assegurar que os efeitos observados se deviam à MCLR
e não a qualquer efeito da matriz do extracto cianobacteriano. Contrariamente ao
esperado, a linha celular de rim Vero-E6 apresentou uma sensibilidade similar ou até
ligeiramente superior à dos hepatócitos (HepG2 e AML12). Por outro lado, o extracto
da estirpe produtora de MCLR induziu um efeito genotóxico (aumento da frequência de
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micronucleos) nas células Vero-E6. Perante estes resultados inesperados e considerando
o desconhecimento ainda existente acerca da toxicidade das microcistinas em células
não hepáticas, seleccionou-se este modelo celular para a avaliação dos potenciais efeitos
genotóxicos da MCLR. Para tal, a citotoxicidade da MCLR nas células Vero-E6 foi
confirmada através da comparação dos efeitos de extractos de M. aeruginosa e MCLR
pura (capítulo 3) e o limiar de citotoxicidade (25 μM) foi determinado, usando os testes
MTT, LDH e Neutral Red. Os resultados deste trabalho demonstraram que a
citotoxicidade da MCLR apresenta uma forte dependência do binómio dose/tempo de
exposição e indiciaram que poderá manifestar-se primeiramente ao nível lisossomal e,
sequencialmente, ao nível da mitocôndria e da membrana citoplasmática. Essa hipótese
foi comprovada pelas metodologias de microscopia electrónica de transmissão e de
imunofluorescência (capítulo 4). Estas metodologias permitiram identificar os alvos
intracelulares da MCLR (retículo endoplasmático, lisosomas, citosqueleto, mitocôndria
e membrana citoplasmática) e concluir que, de acordo com a dose e tempo de
exposição, a MCLR desencadeia uma resposta autofágica nas células Vero, seguida da
morte celular por apotose e necrose à medida que a dose e o tempo de exposição
aumentam. Muitos destes resultados haviam sido já descritos para hepatócitos, mas
apenas muito pontualmente para outros tipos celulares.
Caracterizados os efeitos citotóxicos da MCLR, foram avaliados os efeitos
genotóxicos nas células Vero e nas células HepG2 (capítulo 5) através do teste do
Cometa e do ensaio dos micronúcleos (MN). O primeiro permite detectar quebras na
cadeia de ADN, enquanto que o segundo avalia efeitos ao nível cromossómico,
designadamente efeitos resultantes da quebra de cromossomas (clastogénese) ou da
perda de cromossomas (aneugénese). Os resultados obtidos comprovaram que a MCLR
(em doses subcitotóxicas, 5-20 μM) induz o aumento da frequência de micronúcleos em
ambas as linhas celulares, mas não induz danos na molécula de ADN. A semelhança
dos resultados obtidos com as células Vero e HepG2 sugerem que a MCLR actua
através de um mecanismo genotóxico comum nas células hepáticas e renais, muito
possivelmente através de um mecanismo aneugénico. A distinção entre actividade
clastogénica e aneugénica poderá ser importante para a avaliação do risco, uma vez que
para os agentes aneugénicos pode ser possível estabelecer um limiar de exposição
abaixo do qual não decorrem riscos de efeitos genotóxicos, o que não é aplicável aos
agentes clastogénicos. A identificação do tipo de micronúcleos pela técnica de FISH
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recorrendo a uma sonda pancentromérica permitirá esclarecer qual o mecanismo
associado a este efeito genotóxico da MCLR.
Com o intuito de avaliar o efeito da MCLR na proliferação da linha celular
Vero-E6, utilizou-se o teste de incorporação de BrdU, que avalia a transição G1/S do
ciclo celular (capítulo 6). Os resultados permitem concluir que a exposição a doses
muito baixas (1-10 nM) de MCLR estimula a proliferação das células Vero-E6. Note-se
que a dose de 1nM correspondente ao valor-guia da MCLR em água de consumo
definido pela OMS e está contemplado na legislação portuguesa (Dec-Lei 306/ 2007, 27
Agosto) como valor paramétrico de referência. A análise por Western-blot da expressão
de cinases proteicas activadas por mitogénicos (ERK1/2, JNK, p38) revelou que a
MCLR estimula a proliferação da linha celular Vero-E6 através da activação da via de
sinalização ERK1/2.
Integrando os resultados apresentados nesta dissertação, poder-se-à concluir que
a MCLR desencadeia uma multiplicidade de efeitos nas células Vero, sugerindo que
estas poderão constituir um modelo celular adequado para o estudo dos efeitos
nefrotóxicos das microcistinas. Embora o fígado seja o principal órgão de acumulação e
eliminação da MCLR, cerca de 10% é excretada pela urina, pelo que os rins poderão
também estar expostos a esta toxina. É de particular importância a avaliação dos efeitos
decorrentes da exposição continuada a baixas doses, atendendo ao potencial
cancerigénico da MCLR. Os resultados aqui apresentados acerca do efeito genotóxico e
da capacidade da MCLR estimular a proliferação nas células Vero contribuem para o
conhecimento dos efeitos e mecanismos subjacentes à eventual acção cancerigénica das
microcistinas, sobretudo porque os estudos nesta área têm sido conduzidos
maioritariamente em modelos hepáticos. Os resultados salientam, também, a
necessidade de rever o valor-guia estabelecido para as microcistinas.